O próximo chanceler, já se sabe, será o actual líder da CDU, Friedrich Merz, sucessor de Angela Merkel, mas talhado de um outro material, duma fibra antiga, tão alemã como as malhas da Hugo Boss e com raízes no antigamente de má memória. Não é por acaso que ainda no final dos anos 60 o líder da CDU e chanceler era um antigo membro do NSDAP, activista nazi, de seu nome K. G. Kiesinger.
O discurso de Merz já é difícil de distinguir do da extrema-direita da AfD. Há pouco tempo o futuro chanceler dizia que os estrangeiros tiram o lugar ao bom cidadão alemão que quer ir ao médico (nunca mencionando que sem médicos e enfermeiros estrangeiros nenhum hospital alemão funcionava).
A distingui-lo da líder da AfD, praticamente só a preferência de Merz por Washington (foi alto quadro da norte-americana Blackrock, a maior gestora de fundos do planeta), enquanto a líder da AfD é a favor de uma aproximação a Moscovo. Mas com a amizade especial entre Trump e Putin isso é agora apenas um pormenor.
Merz não poderá, para já e por constrangimento político, fazer uma coligação com a extrema-direita, como acontece na Holanda ou Áustria. O parceiro minoritário para formar governo terá provavelmente de ser o SPD do ainda chanceler Scholz.
Um dos mais proeminentes políticos do SPD que deverá fazer parte desse próximo governo de coligação é Michael Roth, uma personagem sinistra e belicista como poucas. Aqui uma crónica que escrevi, quando o conheci em Lisboa. E sim, ele utilizou, à minha frente e em público, a expressão nazi Endlösung enquanto falava daqueles que são os principais e aparentemente únicos três temas destas eleições: estrangeiros, imigrantes, refugiados.
NOTA: Seria interessante perceber porque é que afegãos e outros imigrantes estão a cometer atentados como o desta semana em Munique e anteriormente em Mannheim e noutras cidades. Seria também importante mencionar com igual destaque os ataques, diários e a aumentar de ano para ano, contra estrangeiros na Alemanha.
ENDLÖSUNG
Estamos sentados os dois, um à frente do outro como velhos amigos, a começar o almoço no restaurante de uma rua castiça de Lisboa, entre nós só uma pequena mesa de toalha colorida, dois pratos, azeitonas e um jarro de vinho tinto. Na realidade, acabei de conhecer o diplomata e de lhe apertar a mão pela primeira vez cinco minutos antes em frente ao café, no meio do parque verdejante do Campo Mártires da Pátria, ladeado pela velha faculdade de Medicina, o Goethe Institut, a Embaixada da Alemanha e, do lado mais pobre, casas com roupa pendurada a secar nas janelas como bandeirinhas num velho navio.
Depois de uma breve hesitação, aceitara dias antes o convite do diplomata da Embaixada da Alemanha para irmos almoçar. O motivo que referiu para me convidar, no e-mail que enviou para a redacção do diário sedeado em Berlim, despertou a minha curiosidade. Queria “agradecer-me pessoalmente” por uma crónica que publicara uma semana antes no diário alemão TAZ, onde duas vezes por mês publico pequenos textos sob o titulo “Zu Hause bei Fremden” (Em Casa com Estranhos).
Sugeriu o restaurante por SMS e eu confirmei. Fazemos um brinde. O diplomata, robusto e compacto, com cara de quem nasceu no campo e foi para a cidade, sorri um sorriso de quem também sabe o que é sofrer, sem se perceber se por dores da alma ou do corpo. À noite canta-se Fado no “Cantinho da Amizade”, leio num cartaz afixado na parede.
Na minha última crónica para o TAZ tinha escrito sobre uma conferência em Lisboa no início de Março com o ministro de Estado para a Europa do governo Merkel, um senhor de nome Michael Roth pertencente ao SPD. O ministro alemão, 45 anos de idade e desde os 28 deputado do Bundestag, viera a Lisboa para “dialogar com jovens portugueses”, como dizia o comunicado de imprensa do evento. Eu, como jornalista e correspondente na capital portuguesa, tinha sido previamente contactado pela organização (um think tank de Berlim ligado aus Auswärtiges Amt, o ministério dos Negócios Estrangeiros de Berlim) para sugerir nomes de participantes nos workshops e na conferência com o ministro.
Há dias em que ainda acordo a acreditar na humanidade em geral, e na política por arrasto, momentos de ingenuidade, achaques passageiros, fiquei feliz por alguém no governo de Berlim querer conhecer e dialogar com jovens portugueses. Sugeri nomes de pessoas com projecção, com ideias próprias, de todos os quadrantes, sem ligações a partidos ou sindicatos. Não deveria ter ficado tão admirado como fiquei com o baixíssimo nível da intervenção do ministro. A apresentação dos “workshops” fora feita imediatamente antes do discurso do ministro por jovens escolhidos pela organização que falavam e apresentavam as sua ideias inócuas como alunos do ensino secundário com receio de decepcionar o professor. O diálogo entre os jovens portugueses e o ministro alemão foi nulo.
Todo o evento “Diálogo sobre a Europa” entre o jovem ministro, velho como uma raposa, e os jovens do país do Sul da Europa em crise não passou de uma caricata operação de marketing, vazia, sem substância, espírito ou conteúdo além de frases feitas decalcadas de outros discursos. Quando o ministro acrescentou algumas banalidades sobre a crise dos refugiados na Europa, repetiu várias vezes que o assunto exigia uma mais célere “solução final” (no contexto entendia-se que se referia-se à decisão dos processos de asilo). Ainda lhe dei desconto: a falar em inglês poderia estar-lhe a escapar a conotação nazi do termo “final solution“/ Endlösung, que na actualidade não cai particularmente bem no discurso de um ministro de Berlim.
Próximo do final do evento, ainda o ministro gesticulava de pé como um guarda sinaleiro, passou-me repentinamente o ataque de ingenuidade. Tal era o vazio de conteúdo, de diálogo e de empatia que se fez luz e fique curado do meu episódio de credulidade. Toda aquela encenação fora meticulosamente organizada e financiada para aquele político de carreira poder publicar no site do ministério e nos jornais meia dúzia de fotografias em pose “ministro dialoga com jovens da Europa do Sul”.
Deixei passar três semanas até escrever sobre a risível prestação do ministro em Lisboa na minha crónica no TAZ, que desencadeou o almoço com o diplomata. “Toda a gente na Embaixada” teria concordado, diz-me ele, que o ministro só viera a Lisboa (já tinha ido a Atenas, brevemente irá a Madrid) para conseguir alguns cromos coloridos para o seu álbum de vaidades, tal como eu escrevera, disse-me ainda durante os aperitivos. Saí do almoço com a sensação de dever cumprido. A vida é assim, às vezes acreditamos que no mundo existe mesmo um “Cantinho da Amizade”. Mas como a terra não é plana, temos sempre que admitir a hipótese, de o almoço ter sido marcado por ordem do ministro para preencher os brancos na minha “ficha”.
Este texto é um excerto do livro de crónicas A CASA DA MULHER INGRATA (Miguel Szymanski, Oxalá Editora, 2021). Quem quiser apoiar o meu trabalho, pode ir a uma livraria ou encomendar os meus livros online. Os últimos três, entre a colectânea de crónicas, a biografia histórica e o romance policial, estão aqui nesta página.
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