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Reparar em vez de destruir

Não gosto de ver um texto meu numa galeria da extrema-direita, emoldurado e exposto com a minha fotografia, sacada algures na net sem autorização.

Aconteceu com o texto aqui reproduzido (“Fui dispensado de vários jornais por me recusar a fazer fretes (…)”) e mais do que só me distanciar desta republicação, quero denunciar a técnica aqui usada.

Escrevi o texto (infra reproduzido) já há uns largos anos. Originalmente, nem sequer era um post, foi um comentário a um post, alguém o leu na caixa de comentários, fez copy/paste e divulgou-o na página “Jornalistas” no Facebook. Até aqui tudo bem. Mas o texto acabou republicado com fotografia e assinatura numa página do Facebook com o nome “Observatório Media Nacional” que, afirmam os autores, faz parte dum “Grupo Editorial de Notícias Nacionalistas”.

Basta ler meia dúzia de posts da página que entretanto parece ter sido abandonada e percebe-se: são radicais para as bandas de um Chega e ainda um bocado mais longe. Do entusiasmo pelos “bons velhos tempos”, passando pela xenofobia, até à defesa do linchamento público está lá tudo, nem falta, logo no topo, a clássica notícia ‘refugiado africano viola idosa’ que, em inúmeras versões, alimenta a fantasia e os preconceitos dos europeus de Angra do Heroísmo a Zagrebe, sobretudo de pessoas que nunca olharam para estatísticas de femicídios, cometidos na esmagadora maioria dos casos por homens da mesma etnia e relacionados emocianalmente com as vítimas. Há milhares destas páginas e destes perfis nas redes: omitem, simplificam, generalizam, distorcem, manipulam, inventam etc. Nada de novo.

Pegaram então neste pequeno texto, um relato factual, com o testemunho de várias más experiências que a minha mulher e eu tivemos em grupos editoriais portugueses, e, no final, escreveram a sua, não minha, conclusão ou moral da história: “Para os que acreditam no que por aí se publica nos jornais…” O testemunho pessoal, partilhado milhares de vezes, é usado para dar boleia e a aparência de credibilidade (tal como a escolha do nome “Observatório” a prometer seriedade e isenção) a uma página cheia de meias verdades e mentiras.

É certo: a imprensa e as televisões em Portugal têm muitos defeitos que têm de ser, e têm sido, com avanços e recuos, corrigidos (o principal defeito por corrigir é a falta de independência editorial das redacções face aos proprietários e acionistas privados). A maioria dos jornalistas nas redacções investigam e redigem as notícias com profissionalismo e rigor ético. Esse rigor dos jornalistas, que por vezes se dilui na edição hierárquica, é inexistente entre os influencers, lobistas, radicais e outros manipuladores nas redes sociais. Os grupos privados têm agendas privadas? Têm. E essas agendas escondem conflitos de interesse que é preciso saber descodificar. Qualquer leitura deve ser crítica. Mas, se nos jornais a divulgação da maioria das notícias obedece a critérios de rigor, já nas redes sociais a divulgação e projecção da maioria das notícias é manipulada. As redes dão uma ilusão de igualdade, mas é quem as gere que decide, quais as bolhas de opinião que são insufladas e quais as que são esvaziadas, rodando um botão para a esquerda e um outro para a direita. Desde o início das redes sociais que o verificável e verdadeiro é subordinado ao viral. Nos últimos anos registou-se um outro fenómeno: quem controla as principais redes assumiu-se como desestabilizador do sistema, não para o melhorar, mas para o fazer entrar em colapso.

Tal como a indústria da comunicação social, também o sistema político, sobretudo no clássico arco de governação, tem muitos defeitos que têm de ser corrigidos (o principal é o ascendente que o sector financeiro tem sobre os aparelhos partidários e os governos). Mas os valores fundamentais, a liberdade e a dignidade de cada pessoa estão, há meio século e um ano, ancorados neste sistema, cheio de defeitos, é certo, e que exige muitas melhorias e muito empenho. Mas estão lá e é preciso defendê-los.

Logo no primeiro artigo da nossa Constituição é enaltecida a dignidade da pessoa humana, uma dúzia de artigos mais à frente ancorou-se a fortíssima ideia de igualdade e tolerância: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”. Não se pode permitir que nacionalistas com saudades dos “bons velhos tempos” despejem o bebé com a água do banho, ou melhor, atirem borda fora a dignidade da pessoa humana e a tolerância.

Este texto é para os que já só acreditam no que se publica por aí nas redes sociais.

N.B. Já agora, a fotografia usada pelo “Observatório Media Nacional” sem autorização tem créditos: foi tirada pelo fotógrafo Rafael Antunes em 2019


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Miguel Szymanski, jornalista e escritor.